quinta-feira, 30 de julho de 2009

CENA QUALQUER

Uma Poltrona. Um telefone. Uma grande TV antiga. O fundo do palco é uma grande tela branca.

DANIEL liga a TV. Vemos a abertura da novela já pela metade. Começa o capítulo da novela. Na TV um salão de beleza suburbano. MÃE faz as unhas de NEIDE.

MÃE
(lixando o calo do dedão do pé da Neide)

Sabe, Neide, a gente não tem como saber se está educando certinho o filho da gente, né?

NEIDE

Eu li um livro muito bom, de um autor húngaro, xi, esqueci o nome, mas tá ali na revista, nos mais vendidos, é ‘como educar os filhos’ ou ‘como cuidar dos filhos’, sei lá, mas é só olhar ali, nos mais vendidos.

MÃE

Mesmo?

NEIDE

Mesmo. Ele diz que amar é fundamental. Que é o cerne, que bonita essa palavra, né?, ai, doeu.

MÃE

Desculpa.

NEIDE

O cerne de tudo.

MÃE

O quê?

NEIDE

O cerne.

MÃE

A.

DANIEL

(da poltrona)

Mamãe diz A.

NEIDE

É bonito, não é?

MÃE

Vermelho Paixão

NEIDE

O amor é o cerne de tudo. O cerne. Um nome bonito pra um filho, não é? Ocerne.

DANIEL desliga a TV, fala com o público....


terça-feira, 28 de julho de 2009

Fição não é mentira

Texto postado em 12 de Março de 2008... as coisas nascem e a gente nem repara...
[http://chicolinguica.blogspot.com/2008_03_01_archive.html]
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Fico puto quando as pessoas dizem que somos atores na vida. Ator é uma profissão, vamos combinar isso. Uma profissão difícil e decente como muitas outras. Mas sob o argumento de que o ofício do ator é o fingimento, muita gente cisma em considerar seus fingimentos do cotidiano como parte da boa e velha arte da vida. "A vida não é uma arte, é uma cópia mal feita da arte", não lembro quem disse isso, mas boto fé! A diferença - se é que dá pra ser tão objetivo - é que a arte lida mais com a ficção do que a vida. Na vida há mais representação, mais fingimento. Na arte, a busca é sempre por algo verdadeiro, orgânico, vivo, sincero, dentro de uma lógica que se supõe ser fictícia (quase sempre). O cotidiano é o espaço do fingimento, e atuar não é fingir, é ser o que se é de verdade, por isso, é tão difícil atuar bem. Sempre gostei de dizer: "não atuo nas horas vagas. Quando paro de trabalhar eu sou eu mesmo"... já não concordo mais com isso. Acho pura besteira de ator babaca. Acho que no cotidiano, nessa vida maluca de múltiplas funções, papéis, âmbitos, etc, fingimos mais, somos falsos mesmo. Maus atores. A ficção que se põe em cena busca por meio do ator ser sempre uma verdade e a verdade que representamos no cotidiano é quase sempre mentira. Eu finjo que estou preocupado com tudo, que sou simpático, que me acho atraente, que estou seguro, que adoro a minha vida, que sou inatingível. Você alguma vez já foi minha platéia, mesmo que eu não soubesse. Mas, me desculpem: eu finjo mal. Eu choro escondido, eu tenho medo de ficar sozinho, eu não sei dizer o que eu penso, eu atraso o abraço e perco a chance de um contato real, eu perco chances de dizer as coisas certas porque tenho medo me verem mesmo, eu preciso que me digam o quanto eu sou legal, o quanto eu sou útil. Eu sou uma mentira bem fuleira. Nem eu mesmo me convenço. Quando atuo por ofício, acho que consigo ser melhorzinho. É que eu preciso da boa ficção pra tentar ser real.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Vídeo #1

SEQ 1 - INT/DIA/SALA

DANIEL tem 30 anos, alto, perfil aquilino, veste-se de forma demodê. Ele fuma na janela do apartamento do último andar do prédio antigo no Centro. Ao fundo ouvimos o som de uma TV ligada. É o comentário do Prates. DANIEL sai da frente da janela e olha para a porta que dá para a pequena cozinha do apartamento. Em plano aberto, vemos através da porta da cozinha as pernas da MÃE estiradas no chão.

SEQ 2 -INT/DIA/COZINHA

O enquadramento é estático em contra-plongé. Vemos parte do corpo da MÃE e o teto da cozinha. DANIEL entra em quadro lentamente. Ele se abaixa e toca no corpo da MÃE. Olha para ela demoradamente. Sai de quadro. Prates furioso na TV da sala. Ouvimos o barulho da gaveta dos talheres sendo aberta e remexida. DANIEL volta com a faca de desossar em mãos.




SEQ 3 - INT/NOITE/BANHEIRO

Água escorre pelo ralo da pia.
Uma respiração ofegante.
As mãos ensangüentadas de DANIEL entram em quadro.
Esfrega com força.
DANIEL vê no espelho seu rosto respingado de sangue.

CORTA PARA
DANIEL sob o chuveiro. A água batendo forte no seu rosto.


SEQ 4 - INT/NOITE/COZINHA

A faca de desossar pingando sangue em primeiro plano. Entre sacos de plástico, panos e produtos de limpeza, DANIEL está, muito arrumadinho, sentado sobre uma mala. Ele tenta terminar de fechá-la. Ouvimos o som da TV na sala, toca uma música romântica, de abertura de novela. Ele faz cada vez mais força. Sobe na mala. Ouvimos um barulho de ossos quebrando. A luz da TV ilumina a sala escura. Através da porta da cozinha vemos DANIEL sair de cima da mla e terminar de fechá-la.

SEQ 5 - INT/DIA/CORREDOR DO PRÉDIO

Sem áudio. As câmeras de segurança flagram DANIEL carregando a mala. Ele aperta o botão do elevador e espera. Uma velhinha sai. DANIEL cumprimenta a senhora, ela puxa assunto. DANIEL entra no elevador, meio atrapalhado.


CONTINUA...

quinta-feira, 23 de julho de 2009

um começo

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Este trabalho parte de desejos pessoais que se cruzaram, afinidades que foram sendo reveladas entre conversas diversas entre ator, dramaturgo e diretor desde meados de 2008. Os idéia de montar uma obra que explorasse limites entre ficção e realidade foi um primeiro impulso. Eu e Gregory Haertel então estávamos montando espetáculos – cada um com seu grupo - nos quais a meta-linguagem estava ali no plano de fundo e vimos uma afinidade que poderia dar frutos. “Me escreve um solo que explore isso?”, perguntei para o Gregory. Então começou o trabalho que estamos desenvolvendo. Depois convidamos Renato Turnes para a direção do trabalho na perspectiva de montar um espetáculo cujo texto fosse escrito em parceria, mas buscando uma dramaturgia coesa, como um bom texto deve ser. Neste caminho, o trabalho com Renato se mostrou ser uma aposta certeira, muito porque ele também se encanta por este território entre o real e a ficção, e mais ainda, entre o cinema e o teatro, o que é neste trabalho um eixo do trabalho de atuação. A busca neste processo é por compreender um corpo realista que estaria neste limites realidade/ficção, cinema/teatro. Vejamos como as coisas começam a se erguer a partir daqui!